Racismo estrutural estimula violência e desigualdade na política

Em ano eleitoral, crescem os ataques contra políticos que defendem pautas antirracistas

Racismo estrutural estimula violência e desigualdade na política
Renato Freitas, que teve mandato cassado pela Câmara de Curitiba, e o vereador por Salvador Luiz Carlos Suíca, dois símbolos da luta antirracista na política - Foto: Divulgação

Nem tudo foi festa na Câmara Municipal de Salvador quando proposto renomear uma rua do Pelourinho com o nome de Alaíde do Feijão, famosa personalidade da culinária baiana morta em janeiro deste ano.

“Eu sofri muito, apanhei muito. Alaíde é uma mulher negra, heroína do nosso tempo”, revela o vereador Luiz Carlos Suíca (PT), presidente da Comissão de Combate ao Racismo e autor do projeto de lei aprovado em maio, apesar da resistência de parte dos parlamentares.

“A história tenta esconder os nossos doutores, Juliano Moreira, Theodoro Sampaio, André Rebouças, para dizer que negro é incapaz. Mas esse é o nosso papel, mostrar que nós construímos esse Brasil e somos capazes de ser o que nós queremos”, diz.

O conjunto de práticas institucionais utilizadas para negar à população negra a ocupação dos espaços de poder e de destaque na sociedade configura, segundo especialistas, o chamado racismo estrutural. São ações forjadas historicamente para manter a hegemonia branca e alijar negros e negras do protagonismo em diversas áreas. E não é diferente na política.

A dificuldade de acesso às esferas de poder é uma barreira a ser superada tanto quanto se manter nelas. Quem se levanta contra essa estrutura tem enfrentado uma reação violenta, como aconteceu com o vereador Jhonatas Monteiro (PSOL), de Feira de Santana, alvo de insultos racistas e ameaças de morte após apoiar uma manifestação de professores na sede da Prefeitura.

Por vezes, a violência não é física, mas tão absurda quanto. Um dos casos recentes que mais chamaram atenção do país é o de Renato Freitas, jovem vereador negro de Curitiba (PR) que teve o mandato cassado, por “quebra de decoro”, por participar em fevereiro deste ano de um protesto numa Igreja católica contra o racismo. A Câmara da capital paranaense retirou seus direitos políticos por 10 anos.   

“Quando a gente assume [a pauta antirracista], eu, o Jhonatas, o caso do Renato Freitas, nós somos atacados, é uma voz que precisa ser calada. Quem ousa falar sobre um tema que dói nas entranhas deles, eles mandam perseguir, exterminar”, alerta Suíca.

Em ano eleitoral, os ataques parecem orquestrados. Para o cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia Jorge Almeida, este cenário se torna ainda mais delicado diante do patrocínio da violência feito abertamente pela maior autoridade política do país.

“Houve uma ofensiva desses grupos racistas que têm raízes ideológicas no fascismo e no nazismo presentes na sociedade brasileira, que em grande parte são estimulados pelo próprio presidente da República”, avalia.

De acordo com Almeida, o racismo no Brasil se conecta com o fato de o país ter perpetuado a escravidão por quase 400 anos, sem que após a sua abolição tenham sido tomadas ações para garantir igualdade de condições entre negros e brancos, mesmo em relação ao trabalho.

“Ao contrário, houve uma política de embranquecimento da sociedade brasileira, estimulando a imigração de europeus e asiáticos. Então, nós tivemos toda uma história que está entranhada nas instituições e na vida social chamada racismo estrutural”, explica.

Para o pesquisador, ações afirmativas, resultado da mobilização do movimento negro, como as cotas raciais e sociais na educação, por exemplo, são importantes, mas não enfrentam por completo a desigualdade e o preconceito, sendo indispensável uma transformação na estrutura econômica e política do país.

“A solução não vai acontecer de uma hora pra outra. Só teremos uma resolução se houver uma alteração muito profunda na vida econômica e política do país. Enquanto não tivermos uma educação pública, gratuita e de qualidade, uma política de emprego abrangente, não vamos resolver o problema”, avalia.

Falta representatividade

O racismo reflete também a falta de representatividade negra nos espaços de poder. A Assembleia Legislativa da Bahia é um exemplo significativo dessa contradição.

Embora a Bahia seja o estado com a maior população negra do país, nas eleições de 2018, de acordo com dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), os deputados estaduais mais votados foram brancos (50,95%). Pardos tiveram 35,86% dos votos, enquanto negros apenas 13,02%. Candidatos que se declararam indígenas ou amarelos conquistaram 0,16%. O número de votos recebidos por brancos não seria alcançado nem se somados os percentuais obtidos por todos os outros candidatos.

O abismo eleitoral é tão profundo que somente naquele ano a Bahia elegeu pela primeira vez em sua história uma mulher negra deputada estadual. Olívia Santana (PCdoB), que já foi vereadora e secretária de Estado, acredita que a sociedade ainda nega um sistema de representação justo.

“O financiamento das campanhas teve avanços, mas ainda é um gargalo. É uma luta para entrar nas direções dos partidos, para se candidatar, ter acesso ao financiamento de campanha de maneira justa, equânime. Não só no Fundo eleitoral, mas também as doações individuais. Então, precisamos de uma gestão política democrática que crie mecanismos que facilitem uma maior participação das mulheres, sobretudo, negras, e da classe trabalhadora”, explica.

A deputada considera fundamental transformar politicamente o país e garantir uma agenda de direitos para as mulheres e de enfrentamento à desigualdade.

“Este Brasil de Bolsonaro, do ódio e do racismo, nós não queremos mais. Tudo que queremos é um Brasil com justiça social, onde as pessoas negras possam existir, sem nenhuma forma de discriminação. O Brasil, maior diáspora afro das Américas, precisa deixar de ser senzala e cova para negros e passar a ser o lar seguro e digno”, ressalta Olívia Santana.
 
O cenário eleitoral desigual não deve ser diferente este ano. O prazo para registro de candidaturas encerra na próxima segunda-feira, 15. Até a sexta-feira, 12, a maioria dos candidatos pela Bahia, em relação a todos os cargos, se declarou pardo (48,58%), seguido por pretos (28,79%), brancos (22,16%) e indígenas (0,32%). Amarelos e as pessoas que não informaram a cor da pele somam 0,16%.

Mas, isso não significa um avanço no final das contas. Apesar de o número menor de brancos candidatos, natural para um estado como a Bahia, os eleitos devem representar ainda um embranquecimento na composição da ALBA, cenário que se repete na maior parte das casas legislativas municipais.   

“O parlamento e o poder político não foram preparados para nós, homens e mulheres negros. Esses espaços foram para os herdeiros escravocratas, os herdeiros de grandes fortunas, que não é o nosso caso. Então, eles nos suportam, mas não nos aceitam”, desabafa Suíca.