Normalização da dor influi em demora no diagnóstico de endometriose

Estima-se que a doença atinja 10 por cento da população feminina em idade fértil; percentual pode ser maior

Normalização da dor influi em demora no diagnóstico de endometriose
Foto: Divulgação

Uma a cada dez mulheres em idade reprodutiva sofre de endometriose no Brasil, o que totaliza mais de 5,5 milhões de pessoas, segundo estimativa da Sociedade Brasileira de Endometriose (SBE). Apesar dos números expressivos, o diagnóstico costuma vir somente após anos de peregrinação em consultórios, como evidenciou recentemente a cantora Anitta, que apresentava queixas relacionadas à doença desde 2013. 

Na avaliação do diretor do Centro de Endometriose da Bahia, o cirurgião ginecológico Marcos Travessa, os números estão subdimensionados. “As mulheres que entram nas estatísticas são as que já têm o diagnóstico. A gente sabe que o diagnóstico é tardio e muitas delas nem têm acesso”, pondera. Ele destaca a existência de trabalhos apontando um prazo de sete a dez anos para a identificação da doença.

“Muito disso é atribuído à normalização da dor, pois se você normaliza não busca um médico, se não busca um médico não tem diagnóstico. Quando a gente fala da normalização da dor não é só pela sociedade em geral, mas também pela própria sociedade médica” reconhece, afirmando haver um esforço entre os especialistas da área para a mudança dessa cultura. 

A doença é caracterizada pela presença de tecido do endométrio fora do útero, gerando as chamadas lesões de endometriose. O endométrio é a camada que recobre internamente a cavidade do útero e descama no período menstrual, respondendo às variações hormonais do ciclo menstrual, daí os sintomas da endometriose serem intensificados durante a menstruação. 

“Primeiro sintoma que deve chamar a atenção na doença é a cólica menstrual incapacitante”, alerta Travessa, referindo-se à dor que reduz a produtividade, faz a pessoa faltar ao trabalho, à escola e muitas vezes buscar um atendimento de emergência. De acordo com a SBE, 57% das pacientes com endometriose têm dor crônica e cerca de 30% apresentam infertilidade. 

Dor lombar que também pode atingir as pernas é outro sintoma frequente citado pelo cirurgião, mas a depender de onde estão as lesões, a endometriose pode gerar sintomas aparentemente inusitados, como dor no ombro e no tórax. No primeiro caso, ocorre especialmente no ombro direito, em decorrência de lesões no diafragma. No segundo, é resultado de lesões no pulmão, que levam ao hemotórax, ou seja a presença de sangue dentro do pulmão, exigindo uma drenagem.

A patologia se apresenta de três formas, a superficial é localizada no peritônio, membrana que reveste a cavidade abdominal. A endometriose ovariana geralmente está associada à presença de cistos nos ovários e também é conhecida como endometrioma. A forma mais grave é a endometriose profunda, caracterizada pela invasão do tecido no qual se implanta em profundidade acima de cinco milímetros. “Pode ter em diversos locais, atrás do útero, ligamento uterossacro, bexiga, intestino, trompas, apêndice e outros”, elenca Marcos Travessa. 

Uma característica peculiar da endometriose é que a gravidade dos sintomas não necessariamente é proporcional à extensão das lesões, nem à localização delas. O especialista comenta que uma pessoa com poucas lesões pode ser muito sintomática, enquanto outra com muitas lesões não apresentar queixas. 

A evolução da patologia também é muito variável, requerendo acompanhamento a cada seis meses, no máximo um ano, recomenda o médico. “A mulher pode ter o diagnóstico da endometriose jovem, com 18, 19 anos, e passar até a menopausa com a doença estabilizada, ou pode acontecer de em seis meses, um ano, ela estar com um quadro completamente diferente, embora não seja frequente”, exemplifica.

Causas

Segundo o médico, existem algumas possíveis causas em estudo, mas nenhuma delas consegue explicar 100% dos casos. “A hipótese etiológica da doença é a menstruação retrógada, ou seja, esse endométrio ao invés de sair pelas vias naturais, descendo pela vagina, ele subiria, saindo pela trompa, caindo pela cavidade abdominal e ali se implantando”, detalha, referindo-se à possibilidade mais acerta atualmente. 

Teoricamente, toda mulher tem algum grau de menstruação retrógrada, provocando a dúvida sobre os motivos para algumas terem endometriose e outras não. A explicação pode estar na resposta imune de cada pessoa, diz Travessa, então em corpos com a imunidade competente, o endométrio que extravasa seria debelado, mas nos organismos com sistema imunológico menos ativo, essas células não seriam reconhecidas como estranhas naquele local. 

Quando a suspeita de endometriose é levantada, existem dois exames que podem ser realizados seguindo protocolos específicos para o mapeamento da doença: a ressonância magnética e a ultrassonografia. Em ambos, a paciente deve fazer um preparo intestinal, que consiste numa dieta pobres em resíduos no dia anterior, um jejum de até quatro horas antes do exame, uso de laxante e a aplicação de um enema um hora antes da realização do ultrassom. 

Travessa informa que ambos são eficientes para o diagnóstico da endometriose, podendo ser realizado um ou outro, mas quando há indicação cirúrgica, ele recomenda que a paciente faça a ultrassonografia e a ressonância. As técnicas representam um grande avanço, pois antes só era possível identificar as lesões por videolaparoscopia, uma técnica cirúrgica, a limitação é a pequena quantidade de profissionais com treinamento específico nesses exames. 

Tratamento pode incluir cirurgia e busca maior qualidade de vida

Não é possível curar a endometriose, mas a paciente pode conseguir uma boa qualidade de vida. “O tratamento envolve vários aspectos, não é só medicação, não é só cirurgia. Primeiro que é uma doença inflamatória e como qualquer doença que tem componente inflamatório merece ser tratada com alguns hábitos anti-inflamatórios”, declara o cirurgião ginecológico Marcos Travessa, diretor do Centro de Endometriose da Bahia. 

Na parte medicamentosa, a escolha será por um método de bloqueio hormonal capaz de manter o estrogênio a níveis basais, a exemplo dos anticoncepcionais com uso contínuo, cita o médico.  “O bloqueio da menstruação, naquelas mulheres que não estão desejando engravidar é essencial”, reforça.

O especialista recomenda a adoção de uma dieta anti-inflamatória, pois a retirada de alimentos com esse perfil tende a melhorar a qualidade de vida da paciente. A prática de atividade física é outro ponto importante, pois a liberação de endorfina vai impactar na percepção da dor. O ideal é fazer pelo menos 30 minutos de exercícios aeróbicos diariamente. Entre as possibilidades de otimização dos resultados, ele cita ainda acupuntura, fisioterapia pélvica e tratamentos de bloqueio da dor.

Cirurgia

A cirurgia será indicada quando o conjunto de medidas conservadoras não surtir efeito ou quando a mulher está tentando engravidar, pois não poderá suspender a menstruação. Mesmo fora desse perfil, a depender da localização e extensão das lesões, o procedimento cirúrgico pode ser necessário para prevenir complicações como obstrução intestinal e obstrução do ureter com perda de função renal, entre outras.

No caso da advogada Mayra Damasceno, fundadora do grupo Endobaianas, ela mantém o tratamento com implante hormonal e a dieta anti-inflamatória continuamente, mas também já fez cirurgia para a remoção de lesões. No último procedimento, foram cauterizados focos de endometriose localizados na pelve e no intestino, e atualmente ela se encontra sem lesões da doença. 

Como a mãe de Mayra foi diagnosticada aos 44 anos, ela começou a ser acompanhada assim que menstruou, buscando uma ação preventiva. Aos 16, seu diagnóstico de endometriose foi confirmado por meio de videolaparoscopia. Hoje, com 31 anos, ela afirma ter uma boa qualidade de vida, mas recorda ter sentido cólica incapacitante e fluxo muito intenso desde a primeira menstruação.

O Endobaianas surgiu há nove anos, após a participação na Endomarcha, onde conheceu pessoalmente algumas mulheres com as quais se comunicava pelas redes sociais. Para reduzir o tempo médio de diagnóstico da doença, Mayra considera fundamental a oferta dos exames específicos na rede pública de saúde, o que atualmente não ocorre.